O presidente Lula (PT) proferiu em 8 de dezembro uma declaração que pegou até alguns petistas de surpresa. Segundo ele, as eleições municipais de 2024 reeditarão sua disputa do ano passado contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
É difícil discordar da avaliação de Lula – pesquisas divulgadas nesta reta final de 2023 indicam uma polarização tão cristalizada quanto aquela de 2022. Ou seja, passado um ano da disputa eleitoral mais apertada do pós-redemocratização, ainda pulsa forte a divisão expressa nas urnas.
O que surpreendeu alguns aliados de Lula, portanto, não é o mérito da declaração, mas a suposta possibilidade de ela “reabilitar” politicamente o ex-capitão – que está inelegível pelos próximos oito anos. Alguns deles, porém, entendem que Lula apenas constatou o óbvio, repetidamente captado pelas pesquisas de opinião.
“Por um lado, Lula sabe como Bolsonaro é nocivo para a democracia. Por outro, percebeu que leva vantagem em um embate com ele“, aposta Jorge Chaloub, cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Lula quer um Bolsonaro ferido, inelegível, limitado.”
Na entrevista, Chaloub também analisa o primeiro ano do governo Lula, os riscos do “plano Haddad”, a briga pelo espólio eleitoral de Bolsonaro e as perspectivas de reconstrução da direita dita democrática.
Confira os destaques da entrevista:
CartaCapital: A eleição de 2024 será “entre Lula e Bolsonaro”, como disse recentemente o presidente?
JC: Lula fala muito menos como analista do que como líder político que quer produzir um efeito, o que é normal. Qualquer presidente falaria nesse sentido. Claro que, por um lado, Lula sabe como Bolsonaro é nocivo para a democracia. Por outro, Lula percebeu que leva vantagem em um embate com Bolsonaro.
Fazer do Bolsonaro o “outro” ajuda a fortalecer uma coalizão, lutar em uma posição de vantagem. Ele quer um Bolsonaro ferido, inelegível, limitado. Me parece que a declaração sugere que Lula acha que é bom competir com ele.
Isso também faz da eleição municipal uma prévia da eleição de 2026. Não sei se Lula chegou a falar que não concorreria, mas me parece que cada vez mais os sinais recentes são de que ele vai concorrer.
CC: Gilberto Kassab já disse que Lula seria o favorito à reeleição…
JC: A gente é cada vez mais ansioso, mas o governo não completou ainda um ano. Qualquer ideia sobre 2026 a gente pode especular, mas ainda é muito precário. Só tivemos um presidente na redemocratização que não se reelegeu, o Bolsonaro. Apesar de ter usado recursos estatais a rodo, teve um mandato peculiar. Ele tinha uma perspectiva muito radical, concorreu contra Lula, teve uma pandemia. Não me parece que dê para tomar a eleição de 2022 como um novo padrão.
Lula concorrendo à reeleição é favorito, mas não significa que o pleito já está ganho
O segundo cálculo muito importante: nos Estados Unidos, há uma expressão para o presidente em segundo mandato, que não pode concorrer à reeleição: lame duck, um pato manco. A ideia é que quando você sabe que não pode mais concorrer, naturalmente seus aliados também começam a fazer política pensando em quem estará no seu lugar. Não poder concorrer à reeleição enfraquece o presidente.
Lula, mesmo que não concorra, se postergar essa decisão, no mínimo ampliará muito a chance de pautar quem será o sucessor. Sem falar que, por mais que ele possa estimular nomes, é improvável que tenha alguém com a força política de Lula daqui a três anos. Ele constrói um capital eleitoral em disputa presidencial desde 1989.
Lula é uma figura muito grande para a política brasileira, pelas vitórias, pelo tempo, pelo imaginário, pela longevidade.
CC: Como Lula e Bolsonaro tendem a agir na eleição municipal?
JC: Bolsonaro em 2020 surpreendeu muita gente porque participou menos da articulação do que se esperava. Não conseguiu construir um partido, não atuou como grande eleitor em algumas disputas. Apontou, mas não assumiu o papel que por vezes se espera do presidente. Ele perdeu a eleição de 2022 por tão pouco que talvez um arranjo anterior pudesse ter gerado efeitos aqui e ali, em uma política mais de base.
Lula parece – e sempre fez isso – querer assumir uma postura diversa, de se colocar como eleitor para reforçar vínculos com prefeitos, ter sua imagem mobilizada, reforçar o partido na base e melhorar a condição para disputar em 2026.
Dado que Bolsonaro elegível em 2020 não mobilizou, resta a questão: vai mobilizar agora? Ele tem um partido para fazer isso? O PL é do Bolsonaro, mas tem outros nomes que também apitam.
CC: Lula disse que a esquerda tem de ‘aprender a conversar’ com os evangélicos. É possível?
JC: É um tema muito delicado. Tem uma certa retórica, que acho excessivamente voluntarista, segundo a qual parece que a esquerda joga sozinha. Que se a esquerda quiser conversar com os evangélicos, tudo se resolve. É muito mais complexo.
Os evangélicos são muito diversos. Falar que a maioria votou no Bolsonaro não quer dizer que a maioria é bolsonarista. Mas não resta dúvida de que nas pautas publicas os evangélicos defenderam pautas contrárias à esquerda e que possuem afinidade com a direita.
Então, conversar sobre o quê? Adaptar-se completamente? Se a esquerda negociar com os evangélicos a questão da “cura gay”, é algo fundamental para a identidade da esquerda. É algo que custaria mais que perder a eleição. Então, coloco isso porque muitas vezes a pauta “faltou conversar” ignora como a negociação é difícil.
A esquerda não pode mudar a visão dos evangélicos em relação a isso? Pode, mas é um trabalho de longo prazo, uma disputa grande. É um processo longo, como foi lá atrás com os católicos. Até haver um movimento católico de base progressista e isso repercutir em organização, demorou.
Agora, ter uma eleição modifica coisas. O Bolsonaro se aproximou não apenas porque “se batizou” com o Pastor Everaldo em 2015, mas também porque sabia que uma série de pautas dele teria aceitação entre parte das elites evangélicas. No caso da esquerda, isso é mais complicado.
Se o trabalho de base começar agora, gera efeito em 2026, mas o efeito é mais longo, de formar lideranças, debater. Uma coisa é debater politicamente as crenças do sindicato dos bancários, mas quando se debate as crenças dos evangélicos há um diálogo entre a política e a teologia, que envolve dogmas, textos sagrados.
Mas, sem dúvida, tem de haver um movimento rumo à base.
CC: No Brasil, como em muitos outros países, a extrema-direita dinamitou o centro. Há alguma perspectiva de reconstrução da direita democrática?
JC: Há dois movimentos importantes. Primeiro, houve uma radicalização da direita que operava na disputa democrática no pós-1989. Entre FHC concorrendo em 1994 e Aécio em 2014, o PSDB passou a assumir pautas mais à direita e até mesmo identificadas com a extrema-direita. Não que o PSDB fosse de extrema-direita, mas ele se radicalizou. Exemplo: a retórica de Serra na campanha de 2010 em torno do aborto e o modo como Aécio usou a maioridade penal em 2014.
Houve uma radicalização dessa direita ao longo do tempo. Em 2018, Alckmin foi sendo largado ao mar, houve adesões à aliança eleitoral e depois uma proximidade com o governo Bolsonaro. No embate com o PT, não apenas o PSDB, mas a direita que operava na democacia foi se radicalizando.
O efeito eleitoral disso para quem disputava eleição majoritária foi ruim. O efeito eleitoral para quem operava nos bastidores não foi ruim. O Centrão virou mais personagem porque os partidos que não almejavam disputar chapas para o governo de São Paulo ou para a Presidência cresceram. Agora, para quem almejava ser a liderança do polo à direita para enfrentar a esquerda – PSDB, DEM, MDB – a consequência foi ruim. PSDB perdeu cadeiras na Câmara, DEM se juntou ao PSL…
E a disputa das grandes narrativas na sociedade passou a ser entre um polo de ultradireita e a esquerda, liderada pelo PT, que, com todas as questões, conseguiu se manter como o partido mais competitivo à esquerda.
CC: E para 2026?
JC: Agora, não temos, a princípio, Bolsonaro em condições de concorrer. Então, já se começa a debater o futuro desse campo. Havia dois caminhos: um caminho é que chegasse alguém mais radical que Bolsonaro. Mas não é isso que ocorreu.
Ocorreu que candidatos querem pegar uma parte do espólio eleitoral de Bolsonaro – porque ele é muito popular ainda – e que por formas diversas apontam que concordam com elementos do ex-presidente, mas que são mais moderados: o Tarcísio [de Freitas, governador paulista], o [Romeu] Zema [governador mineiro], o próprio MBL, que tenta se colocar entre uma direita muito radicalizada e a extrema-direita.
Essa direita mais democrática vai ter de disputar com esses atores que parecem operar por vezes como extrema-direita e por vezes como uma direita democrática radicalizada. Vai ter força? Difícil saber. Se Bolsonaro não for mesmo candidato em 2026, aí tem de ver quem sai na frente. Tarcísio tem um capital eleitoral grande, mas fenômenos acontecem. Quem vai ser essa figura? Eduardo Leite? Outra figura do PSDB?
Ao mesmo tempo em que está aberto, lideranças políticas não se constroem tão rapidamente. Bolsonaro pode ter sido uma tendência, mas pode ter sido uma exceção, já que veio no rescaldo de muita coisa acontecendo, a começar em abril de 2016 [com o golpe contra Dilma Rousseff].
CC: De uma forma geral, como é possível avaliar o primeiro ano do governo Lula?
JC: Um ano é pouco, colocado ainda que o governo Lula vem depois não apenas da eleição de Bolsonaro, que desconstruiu uma série de coisas no Estado, mas Lula teve de remontar os ministérios, por exemplo. Teve de disputar e governar com um Congresso eleito no movimento do bolsonarismo. E Lula começou com uma tentativa de golpe de Estado uma semana depois de sua posse.
Tudo isso faz com que seja um mandato muito difícil. Um cenário duro, difícil, para tomar posse.
Nesse cenário, o governo tem claramente avanços e tem questões com as quais terá de se defrontar. Os avanços são uma volta à rotina institucional, à ação institucional do Estado, a uma perda do temor do golpe de Estado na semana seguinte. Uma certa contenção, depois do 8 de Janeiro, dos militares, que saíram dos holofotes. A institucionalidade e uma série de pautas são ganhos do governo Lula.
A economia também parece estar se recuperando, dando passsos. O governo Lula avançou no cenário internacional, na questão ambiental – como a COP colocou -, atuando como mediador de algumas questões. O Brasil é mais ouvido.
CC: E os desafios?
JC: A questão da comunicação do governo ainda precisa ser afinada aqui e ali, sobretudo uma percepção de que o que funcionava em 2010 não funciona hoje da mesma maneira. Em 2010, a repercussão ainda era a capa da Veja. O temor era o que seria a bala de prata na capa. Esse era o tempo da notícia.
Hoje, tudo estoura instantaneamente, no Twitter, no “zap”. Me parece que às vezes o governo lidou com tempestades e poderia ter lidado melhor tendo atenção a essa velocidade das novas formas de comunicação política.
Outro ponto: resta ver como o governo vai conciliar a tentativa de manter Fernando Haddad [ministro da Fazenda] como futuro do governo, a gestão do Congresso e a necessidade populacional do crescimento.
Basicamente, como o governo vai operar no diálogo com o “mercado”, o Congresso, que quer emendas parlamentares e se acostumou a ter uma autonomia desde Eduardo Cunha, e a população, para ter serviços sociais de boa qualidade e conseguir investimentos públicos que gerem empregos e crescimento da economia.
O governo Lula conseguirá conciliar isso? Não é simples. E todos os atores estão indo por saídas fáceis. Isso é política econômica no sentido político.
Para onde a corda vai com os efeitos que ela vai produzir? Eu sou professor da UFRJ, que tem 60 milhões de reais de corte de orçamento. Esse é o efeito do déficit zero, e neste ano nem foi déficit zero. A UFRJ está caindo, mas poderia estar falando de uma deterioração de um hospital ou de uma escola pública federal.
O governo continuará a aprovar no Congresso assim? Não estou dizendo que não há restrição fiscal, estou pensando na repercussão política da linha Haddad. Como isso vai repercutir em ano eleitoral? Como isso mobilizará a popularidade do governo? A ver. Esse cenário me parece um nó a ser desatado.