quinta-feira, novembro 21

Embora esteja diante de um cenário difícil na América do Sul e tenha feito uma aposta equivocada na Venezuela, o Brasil deixou de ser um pária internacional e a agenda externa do governo Lula (PT) tem um saldo positivo. É esta avaliação de Rubens Ricupero, diplomata, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente sob o governo de Itamar Franco e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento.

“Pode-se dizer que o Brasil, se você olhar o quadro geral, não está nada mal, dentro do que se pode esperar”, afirmou Ricupero em entrevista a CartaCapital. “Neste primeiro ano, já houve um número grande de viagens de Lula. Ele esteve em toda parte, desempenhou um papel muito visível.”

A respeito da América Latina, o ex-ministro vê dificuldades na realização de uma das prioridades do governo Lula em matéria de política externa, como a retomada da Unasul.

Em entrevista a CartaCapital, Rubens Ricupero também projeta a atuação do Brasil na presidência do G20, as perspectivas sobre o conflito na Faixa de Gaza e o panorama das lideranças sul-americanas e do acordo Mercosul-UE.

Confira os destaques da conversa:

CartaCapital: Terminaremos 2023 sem solução para a guerra na Faixa de Gaza?

Rubens Ricupero: Infelizmente, não vejo perspectiva de solução, nem a curto nem a longo prazo. A curto prazo, o trauma sofrido por Israel foi muito forte. Apesar do desgaste do primeiro-ministro e de sua queda de popularidade, a população está muito unida no desejo de se livrar do Hamas. Então, tende a apoiar uma operação mais longa e mais causadora de vítimas.

Israel, evidentemente, precisa considerar a opinião pública, especialmente diante das pressões dos Estados Unidos, o único país com certa influência sobre Israel. Esta influência, mais teórica do que real, só seria efetiva se os EUA suspendessem a ajuda militar, que é de quase 4 bilhões de dólares por ano. Mesmo os generais israelenses admitem que, sem essa ajuda, Israel não poderia conduzir nenhuma operação. Apesar de uma evolução na opinião pública dos EUA, onde as gerações mais jovens são mais críticas em relação a Israel, os dois partidos e outros setores são ainda muito favoráveis a Israel.

CC: Novas pausas são possíveis?

RR: É possível que Israel aceite algumas pausas, como já fez, até porque não quer dar a impressão de que se desinteressou da sorte dos reféns. No entanto, essas pausas não impedirão a continuação das operações, e infelizmente, as perdas civis tendem a se avolumar.

A operação em andamento é muito pesada, com bombas de poderio destrutivo muito maior do que as usadas na Ucrânia, e vê-se que não está havendo um controle muito grande. As perspectivas a curto e longo prazo não são boas. Fora de Israel, muito se fala da solução de dois Estados, mas essa ideia tem cada vez menos apoio na população israelense. As pesquisas mostram rejeição geral a essa proposta, e o governo atual é totalmente contrário. Não confia na Autoridade Palestina, que perde apoio até dos próprios palestinos.

A perspectiva, infelizmente, não é animadora. Há quem ache que a crise em si pode precipitar uma solução melhor, mas tenho dúvidas, considerando as personalidades envolvidas. O governo de Israel ainda é o de Netanyahu e, ainda que ele caia, a oposição com mais chances de chegar ao poder é tão dura quanto ele em relação ao Hamas.

A presidência do Brasil no G20 é uma oportunidade significativa no cenário global

CC: E o cenário na América do Sul, com a chegada de Javier Milei ao poder na Argentina?

RR: A situação para ele é muito difícil. Lá, apesar do que fazem crer os comentários daqui, o problema principal não é o Parlamento. Na Argentina a luta nunca foi parlamentar, é mais na rua.

Milei é uma personalidade extremamente curiosa. Vê-se que é uma pessoa muito com muito pouco equilíbrio. Agora, não há dúvida de que no governo ele surpreendeu, talvez até por instinto de sobrevivência, porque acabou cercado de políticos que são bastante tradicionais.

O principal nome, que é o ministro da Economia, Luis Caputo, foi ministro do Macri e é um homem respeitável, é um homem do mercado, é um consultor. Então, deste ponto de vista, eu acho até que ele não pode ser comparado, no primeiro impacto, nem a Donald Trump nem a Jair Bolsonaro.

Não há perspectiva de solução, nem a curto nem a longo prazo, para a guerra na Faixa de Gaza

Ele não é parecido a esse nacionalismo excessivo de Trump, que já começou com aquelas tarifas que criou e os problemas que multiplicou com a China, nem é parecido a Bolsonaro no sentido de que essas questões sobre “costumes” não têm a centralidade que tiveram no Brasil.

Milei é, sobretudo, um libertário, um partidário de uma visão extrema da ideia da liberdade no governo.

CC: De que forma tudo isso impacta a política externa brasileira?

RR: Em relação ao Brasil, os prognósticos não me parecem catastróficos, mas também não são animadores. Não acho que Milei será hostil ao Brasil, porque não ignora que a Argentina tem no Brasil um parceiro muito importante. Isso vale em relação ao Brasil e a outro país muito criticado na campanha, que é a China.

Agora, Milei tem uma visão do mundo que é muito diferente da visão de Lula, que perde seu principal interlocutor na América do Sul. A Argentina vai seguir um caminho de aproximação com os Estados Unidos, até como uma maneira de tentar equilibrar um pouco o peso do Brasil.

Com tudo isso, a prioridade do governo Lula, que era a América do Sul, com a reconstituição, por exemplo, da Unasul, se inviabiliza. A Argentina não terá nenhuma proximidade em política externa com o Brasil. E no seio do Mercosul, nós também temos pouca proximidade com o Uruguai e com o Paraguai.

No Chile, o presidente Boric está com uma popularidade muito baixa. O governo está se encaminhando para a sua segunda metade e lá se teme que na próxima eleição a direita volte ao poder.

O Peru é uma carta fora do baralho, porque é um país extremamente instável politicamente. Sobre a Colômbia, vimos aquele episódio da reunião de Belém em que acabou sendo polo de oposição, com a ideia de proibir qualquer prospecção de petróleo na Amazônia.

O acordo Mercosul-União Europeia enfrenta dificuldades, mas não está morto

CC: Há, ainda, a crise entre Venezuela e Guiana.

RR: A Venezuela, infelizmente, está se revelando uma aposta errada de Lula. Porque ele tratou Nicolás Maduro muito bem naquela famosa reunião de Brasília, até o convidou para vir antes, mas ele na verdade armou um abacaxi enorme com esse problema da Guiana.

Maduro está fazendo isso em parte porque depende hoje em dia sobretudo dos militares. Além do mais, ele acabou sendo obrigado pelas sanções, pelas pressões, a convocar eleições, eestá também muito mal, com uma popularidade muito baixa.

A situação é complicada, porque essa manobra que ele está fazendo em relação à Guiana, ainda que seja por objetivos internos, cria problemas no Brasil, porque somos o único país que é limítrofe dos dois. E cria desassossego aqui entre as Forças Armadas.

Então, ainda que não se acredite na probabilidade de um ataque, Maduro está criando um problema no continente que não existia antes. Como Lula mesmo disse, a última coisa de que a América do Sul precisa agora é uma guerra ou uma ameaça de guerra.

Chegada do presidente Lula a Berlim, em 3 de dezembro de 2023. Neste 2024, Lula promete viajar mais pelo Brasil (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

CC: Além desse cenário na América do Sul, haverá eleição presidencial nos Estados Unidos em 2024…

RR: A vitória de Milei foi uma injeção de entusiasmo aqui para a direita, não é? Você pode notar até pelas manifestações. No caso de uma vitória de Trump, isso deve ser multiplicado por mil.

Esse panorama mostra que, pelo menos como prioridade, a América do Sul não promete muito para a diplomacia brasileira a curto prazo.

CC: E as perspectivas para o G20, que será presidido pelo Brasil?

RR: Essa presidência do G20 dá ao Brasil uma boa oportunidade. O G20 é o exemplo de maior sucesso e talvez seja o único exemplo de sucesso de uma entidade criada nos últimos vinte ou trinta anos com a ideia de aprimorar a governança global.

O G20, que antes era um grupo meramente econômico no seio do fundo monetário, tornou-se um agrupamento de nível de chefes de governo, chefes de Estado das vinte maiores economias do mundo. Sem dúvida nenhuma, não há nenhum agrupamento que se aproxime do G20 como importância, como peso específico, inclusive como representatividade de vários continentes.

Inclusive, o Brasil preparou bem a sua presidência. As três prioridades que o Brasil fixou para este ano foram muito bem acolhidas.

A primeira é a luta contra a fome e a desigualdade; a segunda é a intensificação do esforço para combater o aquecimento global; e a terceira é como encontrar maneiras de aperfeiçoar o sistema internacional, a ordem internacional, entre elas a ideia do Conselho de Segurança, da influência no Fundo Monetário Internacional, no Banco Mundial etc.

Não é que você possa ter grandes milagres nessas áreas, mas podemos avançar. Porque não são temas tão controvertidos quanto a guerra na Ucrânia ou o problema da Faixa de Gaza. A grande dificuldade é  que todo esse esforço deve culminar, em novembro, na grande reunião do G20 que seria no Rio de Janeiro. Acontece que a eleição americana acontecerá um pouco antes. Se a eleição americana sair de forma desastrosa, aí pode-se esperar muitos problemas

CC: Quais problemas?

RR: A reunião, de certa forma, ficaria esvaziada diante da volta de Trump. E há outras questões, por exemplo essa ideia da presença ou não de Vladimir Putin, que Lula gostaria que se viabilizasse, mas é uma ideia difícil, porque há uma ordem de prisão internacional contra ele.

Além do mais, também é preciso perguntar o que fariam os outros se Putin viesse. Até que ponto os presidentes ocidentais aceitariam participar de uma reunião com ele?

CC: E o famigerado acordo Mercosul-União Europeia?

RR: Não morreu, mas enfrenta dificuldades. No momento em que ele avança, aparecem aqueles inimigos que até então se mantinham ocultos, como é o caso de Emmanuel Macron. Quando ele viu em uma reunião no começo de novembro que se queria dar um empurrão definitivo, tirou a máscara e disse que era contra.

Coincidiu, também, com as vésperas da posse de Milei. O novo governo argentino já deu sinais de que se interessa pelo prosseguimento do acordo, mas ainda haverá negociações.

E na União Europeia, não é só a França que se opõe. Os que se opõem mais são os países que olham com muita preocupação para o aumento de importação de carne do Mercosul – embora esse acordo não tenha concedido tanto quanto se diz, sobretudo em agricultura, ele quase tripilicou a cota de carne. Isso provoca uma oposição muito grande dos agricultores e dos criadores da França, mas também da Irlanda, da Polônia e de outros países.

E ocorrerão outras coisas. A preparação da futura COP em Belém, o Brasil na presidência do Brics… O panorama é esse. Mas a política externa é assim, sempre cheia de surpresas. Se você der o balanço nisso, não estamos mal.

CC: O Brasil, então, voltou?

RR: O Brasil voltou, não é mais um pária. Aquilo que Lula disse quando foi eleito já está feito. Neste primeiro ano, já houve um número grande de viagens de Lula. Ele esteve em toda parte, desempenhou um papel muito visível. Então, pode-se dizer que o Brasil, se você olhar o quadro geral, não está nada mal.

Não é uma maravilha, porque o mundo não é uma maravilha. Mas, dentro do que se pode esperar, o saldo da política externa é claramente positivo.

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