quinta-feira, novembro 21

Como já confessei várias vezes nesta coluna, tenho um deslize, uma dita “fraquejada”, por distopias e tratados de filosofia, e para minha sorte, não raro os gêneros distópico e filosófico se tocam e entrelaçam, e foi o que aconteceu, mais ou menos, na distopia mais recente que li, Filhos da esperança, de Phyllis Dorothy James — mais conhecida como P. D. James —, lançado em julho deste ano pela editora Aleph. Sob o título The children of men, em sua primeira edição, em 1992, na Inglaterra, o livro foi um sucesso de vendas tanto na Europa quanto na América do Norte e, até hoje, sabe-se lá Deus o porquê, não tinha uma edição brasileira.

De repente, lá pela virada do século XXI, as mulheres são atingidas por um surto de infertilidade — na verdade, não fica muito claro se o problema é somente com as mulheres, com os homens, ou com ambos, tendo a acreditar que seja com os homens, dado ao esquema de testagem de esperma que constantemente o narrador da obra expõe no livro. É entorno desse contexto, no qual a obra se desenvolve, e, antes das críticas que se seguirão, cá entre nós: que temática fantástica para uma distopia. A história se passa numa Inglaterra decadente, porém ainda mantida sob um governo que, à medida que a crise de infertilidade avança e a população fica cada vez mais velha e inválida, se torna constantemente mais antidemocrático e autoritário, sob a desculpa da necessidade de se manter a mínima ordem e conforto ante o colapso fatal da humanidade. A obra tem uma forte conotação de crítica política, como em todas as distopias do século passado, e, por isso mesmo, a considero antes uma obra distópica do que uma ficção científica em seu sentido mais comum — mas, como veremos, sua crítica política não se dá, exatamente, nos mesmos modus operandi que os demais livros clássicos do gênero.

O narrador da obra é Theo Faron, um historiador divorciado, atormentado pela lembrança de ter matado acidentalmente a própria filha quando ela era ainda uma bebê. Theo é também o primo do administrador da Inglaterra, Xan, e, por um breve tempo, atuou como seu conselheiro no governo; o melancólico historiador foi o único amigo de Xan na juventude — indivíduo que, desde o início do livro, é pintado como alguém quieto, frio e arrogante, um vilão moderno que transita entre o asqueroso ditador e “o homem que faz o que é preciso ser feito em tempos difíceis”, fica sob o entendimento do leitor a análise.

Theo é um historiador, mas bem que poderia ser um filósofo, pois em vários momentos do livro dilemas éticos e sociais ganham o protagonismo. Por exemplo, em várias passagens se debate qual o valor da vida. Afinal, ante a iminência de colapso humano, as regras morais passam a ser relativas ou são ainda mais necessárias? A eutanásia dos desesperançados, velhos e doentes é algo justo e correto ou não? Existe dignidade na vida quando o fim é inevitável para toda a humanidade, ou o conforto máximo se torna o único valor possível? Quais seriam as obrigações da última geração nascida ‒ denominada como “ômega”, no romance ‒ se a humanidade está fadada ao fim independentemente do que se possa fazer?

P. D. James é uma laureada escritora inglesa. Ela escreveu inúmeros livros de ficção, a maioria deles sob a temática policial e de suspense num contexto mais amplo, seus livros costumam ser mais diretos, com descrições mais breves dos personagens — o que ela costuma equilibrar com o desenvolvimento da trama e dos ambientes —, em Filhos da esperança, todavia, isso se inverte. A autora se dedica, por vezes, em descrições verborrágicas de personagens que terão quase nenhuma importância geral para a trama, uma falha boba de planejamento, me parece.

Da crítica ao tratamento dos estrangeiros como escravos pelo governo de Xan; à desumana ausência de cuidados com os detentos, que são jogados em uma ilha sem nenhum mantenedor ou mínima regra, a fim de que se matem numa selvageria psicopática; às reflexões críticas sobre a dignidade da vida humana, em especial, a dos bebês e velhos; e a mais direta e evidente de todas, a crítica à eutanásia; todas elas são características que fazem do livro algo mais do que um suspense de entretenimento mediano. Devo, contudo, fazer justiça, tais críticas no livro, ainda que claras, não são panfletárias, isto é, feitas com pudor ideológico, são antes desenvolvimentos necessários daquela sociedade que a autora constrói na cosmologia da obra. Assim sendo, ao contrário de outras distopias, aqui não temos uma crítica política direcionada a um campo ideológico, mas uma trama de ficção que, no decorrer da sua construção, passa por análises esmeradas de um narrador com natural pendor crítico.

As primeiras 200 páginas são lentas, cansativas mesmo. Há um excesso de cuidado descritivo nos acontecimentos periféricos da estória, basicamente, reminiscências de Theo e descrições psicológicas de personagens, em sua maioria, dispensáveis ‒ como já dito antes. Porém, nas últimas 150 páginas, o livro ganha uma celeridade e ação dignas de um ótimo suspense moderno. Theo, de um indivíduo pacato, melancólico e chato, se torna um herói improvável de uma grávida deformada, perseguida pelo Estado num frenesi alucinado de Missão Impossível. O simbolismo que a autora constrói nas 200 primeiras — e chatas — páginas, compensa para o sprint final do livro; P. D. James fez de um historiador que fede a mofo e prostração, o intrépido homem que trará à luz a esperança da humanidade, isto é, do passado vem o futuro, do arrimo que vem a sustentação do telhado, é da experiência que vem o avanço, é através do velho ofício da parteira que as novas gerações nascem. Em tempos nos quais o aborto volta meia retorna ao debate público como benesse social, pensar no valor atávico de uma simples vida, ainda que em um terreno fictício, pode nos ajudar a vislumbrar tal valor afastado dos típicos argumentos desse debate. Quanto vale uma vida, em si mesma, sem mais ponderações(?); o que daríamos por essa vida se ela fosse nossa única esperança de sobrevivência…? Perguntas essenciais, dignas de uma obra de profundo calibre filosófico. E mais, P. D. James traz a tradição ocidental e sua ética humana aplicada ao palco central de seu romance, fazendo de um erudito atormentado pelo peso do passado, o guardião aguerrido de um frágil futuro.

Ao final, podemos dizer que o livro é muito bom, mas poderia ter sido melhor se a autora tivesse trabalhado a estrutura da obra com menos preciosismo e mais atenção ao que era necessário à trama central, temos a sensação de que há dois livros, um de drama, análise psicológica e filosófica de uma sociedade decadente, que poderia facilmente compor a seção de ciências humanas de uma livraria, e a outra metade feita de um suspense acelerado, ao melhor estilo pop de literatura dos anos 1980 e 1990.

O livro foi adaptado para os cinemas, com o mesmo título, em 2006, por Alfonso Cuáron. Um bom filme no geral, apesar de ter deixado às favas partes importantes da obra. Confesso que quando comprei esse livro, ainda no lançamento, comprei antes pela capa e pelo trabalho de marketing da editora Aleph. A ideia geral da obra é instigante, a ideia de uma infertilidade global como causa apocalíptica não é algo novo, mas escrito por alguém do calibre de P. D. James, faz do texto algo por demais interessante.

Apesar dos pontos negativos que destaquei da estrutura da obra, não me arrependo da leitura, os insights da autora, através da descrição de Theo, são profundos e fizeram borbulhar minha mente por semanas. A originalidade da abordagem de James à problemática da dignidade da vida humana é o ponto alto da reflexão do livro, o prazer da ação da segunda metade, o bálsamo dos amantes das ficções distópicas como eu; agora, refletir sobre os valores humanos mais intrínsecos, através de uma boa obra de distopia, meu Deus, é maravilhoso demais.

Leia também: “A cruzada contra o livre pensamento”, reportagem publicada na Edição 194 da Revista Oeste

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