segunda-feira, novembro 11

O Congresso Nacional tem atualmente 101 proposições legislativas que buscam diminuir possibilidades do aborto legal na legislação brasileira. Pelo menos 20 das propostas foram protocoladas após a ampla campanha de rejeição popular contra o Projeto de Lei (PL) 1904/2024, que equipara a pena para a prática àquela aplicada ao crime de estupro, apelidado de “PL do Estupro”. A Câmara dos Deputados é o maior foco do problema, sendo o palco atual de 90 das 101 propostas. As demais tramitam hoje no Senado. O levantamento é do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), que acompanha com atenção o debate sobre o tema no Legislativo.

A lista de propostas mapeadas pela organização contém não apenas PLs, mas outros tipos de medidas, como projetos de decreto legislativo (PDLs) e propostas de emenda constitucional (PECs). Todas miram pontos que de alguma forma levariam o Estado brasileiro a rever as garantias legais já asseguradas atualmente. O arcabouço jurídico nacional permite o aborto em três situações específicas: casos de gravidez gerada após estupro, fetos anencéfalos e quando há risco de vida para a mãe.

A assessora técnica do Cfemea, Clara Wardi, destaca a preocupação com o PL 2499/2024, de autoria de 35 deputados, sendo uma parte deles coautores também do “PL do Estupro”. A proposta fixa para a rede de saúde a obrigatoriedade de notificar a polícia quando houver interrupção da gestação decorrente de estupro. O projeto cita que essa competência precisaria ser absorvida por “hospitais, clínicas, unidades básicas de saúde, profissionais de saúde e demais serviços de saúde”. Os autores do PL argumentam, no texto, que a medida ajudaria a “identificar e combater os crimes sexuais”.

“Esse tipo de proposta vinha sendo apresentado antes mesmo do governo Bolsonaro, por exemplo, e já veio na forma de portaria na gestão dele. Depois ela foi revogada, no início do governo Lula, e agora reaparece em forma de projeto de lei. Esse PL aponta para uma possível nova estratégia de ofensiva da extrema-direita em torno da pauta do aborto”, comenta Clara Wardi, ao mencionar a repetição de coautores entre o PL 1904 e o PL 2499.

Além do PL 2499, o rol de medidas inclui uma série de outros PLs que obrigam o registro de Boletim de Ocorrência (B.O.) para profissionais de saúde em situações do tipo. “Essa proposta tem um viés policialesco muito forte. Ela mais prejudica e afasta as vítimas [de estupro] dos serviços de saúde do que protege”, afirma a assessora técnica do Cfemea.

“E o texto ainda prevê obrigação para os profissionais de saúde de preservarem o feto e o material genético embrionário para serem colocados à disposição da autoridade policial e judiciária e possibilitar a perícia genética ou prova de paternidade. Esse PL é uma violência imensa com as mulheres, que podem ter a sua palavra colocada sob dúvida em relação à ocorrência de estupro, e ainda submete essas mulheres a um processo muito violento junto ao agressor”, emenda Clara Wardi. A especialista ressalta que esse tipo de medida “revitimiza as vítimas de estrupo que estejam precisando acessar o aborto legal”.

A ideia de fixar registro de B.O. ganhou destaque no cenário da discussão sobre o aborto principalmente nos últimos meses, durante a campanha de reacionários favoráveis ao PL do Estupro. A defesa desse ponto foi feita nas mídias sociais pela esposa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Michelle Bolsonaro. O Cfemea argumenta que a imposição de boletim de ocorrência significa mais uma barreira institucional para dificultar o acesso de vítimas de estupro ao aborto legal. “Isso reflete a preocupação histórica da extrema-direita com o punitivismo em relação à violência sexual e aponta para falta de atenção às vítimas nesses momentos críticos de necessidade de saúde, como é o momento de um estupro, por exemplo. Querer que as vítimas apresentem o B.O. é afastá-las dos serviços de saúde”, interpreta Wardi.

“Direito à vida”

Um outro destaque da lista de propostas antiaborto é a PEC 29/2024, que altera a Constituição Federal para considerar como “marco temporal de início da vida humana” a concepção [do feto], considerando esta como a “junção do gameta masculino e o feminino, ocorrida durante a fecundação”. A medida reedita uma série de outras proposições de abordagem similar que já convulsionaram os debates no Legislativo federal em outros momentos. “Nada mais é do que a velha estratégia da extrema-direita e dos antiaborto de incluírem na Constituição que a vida deve ser protegida desde a concepção. E nós temos outros, muitos outros desses também apresentados”, reforça Clara Wardi.

Por se tratar de uma proposta de emenda constitucional, a medida não precisaria ser submetida à avaliação do chefe do Executivo caso seja aprovada, já que PECs não necessitam do crivo do presidente da República e por isso não estão submetidas ao risco de veto. Elas são promulgadas e publicadas pela mesa diretora do Congresso Nacional. A PEC 29 é assinada por mais de 180 parlamentares homens e mulheres, sendo eles dos segmentos da direita liberal e da extrema-direita. A assessora do Cfemea classifica essa como sendo uma proposta “de altíssimo risco” porque, caso eventualmente aprovada, teria como consequência prática a proibição do aborto em todas as circunstâncias já permitidas no país.

Rota

Para a assessora do Cfemea, o surgimento de novos PLs antiaborto mesmo após o revés sofrido pela ala reacionária da Câmara com o PL do Estupro aponta para uma tentativa de desenhar estratégias para reinventar a rota rumo à cassação dos direitos reprodutivos das mulheres. Ela também vê na empreitada uma iniciativa de demonstração de força por parte do grupo.

“Acho que é uma tentativa também de mostrarem que não se constrangeram com os debates, por isso a demonstração de força numa proposta com mais de 180 parlamentares assinando. E acho que foi também uma tentativa de, mais uma vez, selar alianças internas [entre eles], já que, diante de todo o debate sobre o PL 1904, isso se desestruturou um pouco e pode ter havido certa insegurança de alguns parlamentares lá dentro [em defender a proposta]. Houve, por exemplo, a retirada de assinatura de uma das deputadas que assinavam o PL 1904”, resgata Clara Wardi, ao mencionar a repercussão negativa do PL do Estupro.

“Isso demonstra um passo atrás [por parte de alguns parlamentares], mas, mesmo assim, ver que tantos outros deles entraram também como autores de outros projetos do tipo é algo que nos mostra que os parlamentares conservadores não darão passo atrás dentro dessa pauta na Câmara dos Deputados nem no Senado.”

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